O reggae arrasta multidões em São Luís, capital do Maranhão. O ritmo na cidade inspira uma dança própria, e é difundido por mais de 200 “radiolas”, grupos musicais organizados ao redor de DJs e paredes de som que chegam a ter até 40 amplificadores. Por sua relação com o estilo musical, a cidade ficou conhecida como a capital do reggae no Brasil - ou, simplesmente, “a Jamaica brasileira”.
Há várias teorias sobre como o estilo chegou ao Maranhão. Uma das mais difundidas é a de que foi através de ondas de rádio do Caribe na década de 1970, que traziam também outros ritmos, como calipso e zouk.
“Várias pessoas na faixa de 50 e 60 anos contam que ouviam música jamaicana na rádio mesmo quando nem sabiam o que era reggae”, afirma a jornalista e antropóloga Karla Freire, autora do livro “Onde o Reggae é a Lei”, lançado em 2012.
Em sua tese de doutorado “Jamaica Brasileira: a política do Reggae em São Luís, Brasil, 1968-2010”, pela Universidade de Pittsburgh, o historiador Kavin Paulraj escreve que ritmos caribenhos chegaram ainda antes na cidade, entre as décadas de 1950 e 1960.
“Apesar de sua exclusão dos salões de dança da alta sociedade, os setores populares de São Luís podiam igualmente ouvir a boleros de sucesso nas rádios AM. E eles rapidamente encontraram outras fontes de música caribenha graças à proximidade geográfica. Apesar de serem difíceis de verificar, há muitos relatos de entusiastas de ondas-curtas do Maranhão e do Pará captando sinais caribenhos de rádio.”
Também foi importante para essa importação de ritmos a atuação de marinheiros, especialmente contrabandistas de café brasileiro para as Guianas. Enquanto as rotas por terra até a isolada ilha de São Luís eram traiçoeiras, o tráfego por navio era relativamente simples.
Era comum que embarcações vindo ou partindo do Suriname e da Guiana Francesa aportassem em Belém e São Luís. Além de contrabando, os marinheiros também traziam música, lembra Paulraj.
Mapa de São Luís e Kingston
 Em sua tese, ele argumenta que essas primeiras trocas foram importantes para criar um público ávido por música caribenha que depois solidificaria a preferência pelo reggae.
A partir do golpe de 1964, essas rotas entre São Luís e o Caribe foram fortemente combatidas, e o consumo da música caribenha passou a depender mais das ondas de rádio e dos discos de produção nacional.
Na década de 1970, o reggae começou a ser difundido em festas. Inicialmente, o ritmo era tocado no final de uma sequência de ritmos agitados como forró, lambada, merengue e salsa, com o intuito de “desacelerar” o público.
Em sua tese de doutorado, Paulraj afirma que os discos de reggae tinham o status de raridade, o que ajudou a alavancar os promotores de festas do final da década de 1970, que podiam vender aquele som como um produto exclusivo.
Foi nesse contexto que se formou a chamada “massa regueira”, o imenso público de reggae difundido pela periferia de São Luís.
A partir da décadas de 1980, programas de rádio e televisão dedicados ao reggae já ajudavam a difundir o ritmo. Na década de 1990, eram mais de oitenta salões e clubes de reggae pela cidade.

Por que o ritmo jamaicano caiu no gosto dos maranhenses#

Mais importante do que o caminho do reggae até o Maranhão é por que o ritmo ganhou tanta força no Estado. Alguns pesquisadores defendem que o estilo tem uma batida parecida com ritmos folclóricos locais, como bumba-meu-boi ou tambor de crioula, como Marcus Ramúsyo de Almeida, em seu trabalho “Percurso Histórico das Mídias de Reggae em São Luís”.
“A guitarra, que no reggae produz o efeito da repetição, tem a função de dar a ginga ao reggae, assim como as matracas no tambor de crioula”
Marcos Ramúsyo de Almeida
Comunicólogo
“O reggae é uma música de negro, com baixos e graves fortes. Por isso existe uma identificação muito grande com a cultura negra do Maranhão. Em muitos casos, a mesma pessoa que curte o reggae é quem toca o bumba-meu-boi, o tambor de crioula”, afirma Karla Freire.



Ganhos na tradução: ‘Agarradinho’, radiolas e 'melôs'#

O reggae maranhense tem diferenças do ritmo na Jamaica. No Brasil, o estilo se propagou inicialmente com base no apelo de seu som, descolado da cultura rastafári e do contexto social jamaicano.
Enquanto em Kingston se dançava mostrando força, em São Luís o reggae inspirou uma dança de casais mais lenta e sensual, o estilo “agarradinho”, uma invenção local.




“A falta de informação sobre o reggae ou a visão de mundo que a acompanha através da cultura rastafári permitiram que o público local continuasse a pensar na música jamaicana primariamente como música romântica para dançar”
Kavin Paulraj
historiador e autor da tese de doutorado “Jamaica Brasileira: a política do Reggae em São Luís, Brasil, 1968-2010”
O desconhecimento da língua inglesa também fazia com que grandes hits -chamados de “pedras preciosas”, “pedras de responsa” ou simplesmente “pedras”- fossem rebatizados como "melôs" (encurtamento de melodias).
A pesquisadora em linguística Elaine Araújo em sua tese “O Reggae Ludovicense: uma leitura do seu sistema léxico-semântico” afirma que a música "Sweet P.", do grupo Fabulous Five, é chamada de “Melô da Chuva” porque na ocasião em que foi lançada em São Luís pelo DJ Carlinhos Tijolada chovia torrencialmente no clube Barraca de Pau, localizado no bairro Cidade Operária.
E a música "White Witch" da banda Andrea True Conection é conhecida como  “Melô do Caranguejo” porque o refrão ”What’s gonna get you?” foi interpretado pelos ouvidos maranhenses como “olha o caranguejo”.
Ouça por você mesmo:


 A cultura rastafári só começou a ser mais conhecida em São Luís em meados da década de 1980 e na década de 1990, quando o reggae, já bastante popular na periferia, chegou à classe média e a artistas da cidade, que começaram a formar as primeiras bandas.
Um exemplo é a Tribo de Jah, uma das bandas de reggae mais conhecidas do Brasil.
Outra particularidade do reggae maranhense são as radiolas, paredes musicais que reúnem até 40 caixas de som transportadas em três caminhões. Karla afirma que na última contagem, há cinco anos, foram identificadas 200 apenas em São Luís. Algumas delas surgiram ainda na década de 1980, como Giga Estrela do Som, Itamaraty e FM Natty Nayfson.
As mais tradicionais são tocadas como negócios e realizam concursos para selecionar DJs, celebridades locais que chegam a ser mais importantes do que vocalistas de bandas devido a sua capacidade de hipnotizar o público com suas “pedras de responsa”.
A radiola Itamaraty, por exemplo adota o slogan “Itamaraty, a Marca da Credibilidade”.

A ‘Jamaica brasileira’ já foi a ‘Atenas brasileira’#

Foto: Divulgação
Guia turístico do Reggae em São Luís
Karla afirma que houve inicialmente resistência em associar o reggae a São Luís, que já havia sido identificada como a Atenas Brasileira, “pela evocação de um passado glorioso, de grandes nomes da literatura, artes e ciências, encarnado por jovens filhos de comerciantes e produtores agrícolas, que retornavam de seus estudos na Europa”. Autores como Aluísio de Azevedo, Gonçalves Dias e Graça Aranha ajudam a compor a imagem dessa São Luís intelectual do século 18.
Até a década de 1980, os jornais ligavam as festas de reggae sobretudo à criminalidade, afirma.
Desde os anos 2000, no entanto, essa resistência diminuiu, conta Karla. O estilo passou a ser reconhecido como uma marca da capital maranhense. O epíteto é adotado até mesmo pela Secretaria de Turismo de São Luís, que criou um guia turístico do reggae na cidade.